quarta-feira, novembro 28, 2012

Congonhas




Lembro a cidade acolhida na montanha
aninhada e espalhada nas dobras da montanha.
Cidade mistério onde à noite
os anjos do Aleijadinho vão brincar
no planalto do cruzeiro,
corados e robustos,
sobre o cenário da treva túmida de luzes.
Cidade conservadora
com uma rua só para as mulheres
(como se as outras não o fossem),
a praça onde moram os ricos,
tradicionais famílias que vão à missa domingo
e dormem às nove horas
sobrecarregadas de direitos ofendidos.
Cidade pequeno-burguesa
de frias noites enluaradas e silenciosas.
Pobre em seus arredores
de casebres de tábua, lama, cães vadios,
de criancinhas sujas mas felizes
com aquele olhar inocente das crianças felizes.

Seria uma cidade igual às outras,
diamante bruto ao fundo da montanha-mina,
não fosse pelo bailado dos profetas na igreja
em movimentos leves de pedra-sabão
nas dobras panejadas de seus mantos
as graves faces de ângulos suaves.
Esses profetas
cobrem a terra de harmonia lúdica,
mágicos e inaudíveis cantos.
Tornam em ouro o pó
e o azul do céu em prata clara.
Decidem os destinos da cidade
secretamente
no espaço-tempo dos fatos.
E ao lado de aparente sisudez
praticam um misticismo feiticista,
ritualista e irreverente
que à noite anima os personagens pios
dos passos da via-sacra
para os fazer pecar.
São sábios a seu modo,
unânimes como os sete anões de Branca de Neve
e, íntimos do Pai,
riem dos homens e dos anjos,
enquanto lançam sobre os visitantes
o olhar vazio e solene das estátuas.

segunda-feira, novembro 26, 2012

De gavetas e gaiolas




A gaveta esquecida
retém lances de dados
jogos refeitos
e devaneios datados
de alguma primavera.

O corpo é um limite
e adivinha
mares e voos
preso à monotonia
da respiração necessária.

Respira na gaveta
uma existência de pássaro.
Aberta uma gaiola
o pássaro tem medo
de se atirar no vazio.

sexta-feira, novembro 23, 2012

Eco




Sou meu resto
mas ainda acredito.

Sonho com a neve
véu sobre um bosque
vegetais rasteiros
sob a lua.

Todas as noites
desilusões semeiam
gatos cegos
como se ainda pudessem
voltar a enxergar.

Mas um amor não recomeça.

Ainda vive um resto
que respira.

quarta-feira, novembro 21, 2012

Como diria Calvino



Se numa noite de inverno um viajante
como diria Calvino
abandonasse o caminho conhecido e arriscasse
tudo que lhe pudesse acontecer
o pé torcido, o medo, um mau encontro
ou se perder em estradas deslizantes
seriam responsabilidade dele mesmo.
Alcino quis reviver o gosto da aventura
tinha saudade do risco
os ossos mal encaixados
e um vago tremor
inexplicado
Alcino quis reviver o gosto da aventura
tinha saudade do risco
os ossos mal encaixados
e um vago tremor
inexplicado.

Nossa amizade começaria
numa clínica
Alcino mal-humorado

segunda-feira, novembro 19, 2012

O mar do visionário



                                                                            Sem nome de autor.


                             Para Debussy

O mar fala de penínsulas
que há muito o tempo desmanchou
tocadas pelas aves pela espuma
as algas retorcidas
e algumas ilhas sem nome
recolhidas
a uma velha praia desbotada.
O vento vem sonhando
voz de pérolas
de pacientes espumas
e alimento de peixes e sereias.
Os temas que sonha o mar
nunca se acabam
ainda longe de ilhas e areias
como pranto
decantado em salinas desatadas
corais que as ondas cobrem
e serpeiam
em cristas sempre novas
ou explosões de fúria e som
e dor
confins, traições milenares
catedrais e sinos
melodias
entoando vozes submersas
ou náufragos em plânctons conversos.